quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Ô Cride, fala pra mãe!

Enquanto trombadinhas assaltam pelas ruas do Rio, enquanto os velhinhos jogam sueca na praça do Lido, enquanto uma grávida dá a luz num hospital público da baixada e enquanto um cachorro de madame caga na calçada, você está sentado no sofá esperando a morte te tragar lentamente. E as coisas aconteceram, mudaram, pularam... e quando se dá conta, cadê?

Você desperdiçou todas as tardes de domingo com o Programa do Gugu. Viu aquela cara cheia de botox explorando a tristeza alheia. Se compadeceu dessas pobres almas, mesmo que você fosse incapaz de compartilhar o alimento do próprio prato.

Perdeu uma infância inteira de jaboticabeiras, correrias e outras molecagens enquanto esperava a Xuxa descer de seu disco voador e te ensinar toda a sorte de futilidades. Viu um palhaço medonho te roubar muitas noites de sono. Você era fã de uns mexicanos de imbecilidade repetitiva, que até te fizeram comprar seus produtos. Teve informação suficiente para se tornar uma criança idiota.

Criança idiota, adolescente idiota, adulto idiota. Desperdiçou todas as energias se masturbando diante dos filmes madrugais de Emanuelle, até ter surpreendido seu pai fazendo o mesmo. Você foi uma criança com muitas espinhas e poucos amigos. Teve seu caráter formado pelas retóricas ideológicas de Malhação, uma juventude plastificada e pobre de espírito. Por efeito, Malhação é a preparação que as cabeças aborrecentes recebem para as novelas que assistirão futuramente, quando já tiverem idade adulta. Quando forem, enfim, pais idiotas.

Seus filhos vão ser pequenos comedores de Big Mac. Na propaganda, uma criança feliz e sorridente lambe os lábios e chupa os dedos diante dessa ração de carboidrato. Os olhos de suas criaturas vão brilhar e você vai se lembrar de quando viu pela primeira vez na TV o comercial do "sorvete que é a sensação do momento" (a gíria não foi adaptada aos nossos tempos). Sua prole vai crescer e comprar cada vez mais. Vão te roubar e mentir pra você.


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Você envelheceu e se envergonhou de nunca ter pintado um quadro ou de nunca ter escrito uma música. Idolatrou esse tempo todo a televisão como um obediente servo. Comprou todos os seus produtos, seguiu à risca seu padrão de estética. Deixou de interagir com a sociedade para ficar engaiolado no seu tédio.

Agora, sentado no sofá, você não é ninguém. Nunca foi ninguém. Não vale a ruga que te resta, nem a morte que te consome.

A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada
A luz do sol me incomoda então deixo a cortina fechada
É que a televisão me deixou burro, muito burro demais
Agora vivo dentro desta jaula junto dos animais
Ô Cride, fala pra mãe...

7 comentários:

  1. Que bom que partilhamos do mesmo ódio por televisão...
    E o pior é ouvir frases do gênero: a novela explora a realidade, promove o debate público...

    Patético.

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  2. Não sei, não me sinto bem...
    Uma vida de inutilidades...
    Acordo, vou à academia e corro na esteira ao som do "Bom Dia Brasil". Retorno para casa e, num impulso, a TV se liga. Nem sei o que diz, mas enche a casa.
    Para comer, para dormir, para relaxar, para entreter, para preencher, ligo a TV.
    Para ler, para sonhar, para trabalhar, para sorrir, ligo a TV.
    A Xuxa diz para sempre acreditarmos no sonho, e me consola.
    O "Saia Justa" conta que existem muitas mulheres na mesma situação que a minha, isso me alivia, que bom, somos todas iguais.
    O jornal mostra que telinha exibe a realidade. Ou será que a realidade se exibi na telinha? Essas coisa me confundem, prefiro não pensar.
    É, não sei o que o Alan quis dizer com tudo isso. Vou pesquisar. Vou aproveitar pra Zapiar e ver se encontro alguma coisa...

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  3. a Xuxa tambem costumava me consolar, até que li Clarice Lispector e a realidade deixou de me assistir.

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  4. NAO XINGUE A TV !
    sem a tv eu nao veria nem 1/120938 dos jogos de futebol que vejo !


    ademais, mete o pau nessa caixa maldita que eu libero!

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  5. o comentário da maiana é complementar ao texto

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