domingo, 14 de dezembro de 2008

Cien años de navidad

Enquanto viajava pelas estradas sinuosas e esburacadas, de dentro do ônibus ele já organizava os pensamentos para o que de fato viria acontecer. Tentava não se esquecer de ninguém. Procurava nas lembranças todas as personagens da infância, uma a uma, para que fossem saudadas durante a grande comemoração de natal.

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Agora seus antigos cúmplices de campainhas e vidros estilhaçados são homens de família, trabalho e fé, sendo que a religião lhes incutiu a falta de razão. Condena-se o razoável e aceita-se com bons olhos o absurdo. A lucidez é substituída pela emoção. Todas as escolhas devem estar baseadas e sustentadas por uma ideologia que somente gira ao redor de um mesmo plano. As idéias são restringidas pela moral e ética pré-estabelecidas por leis um tanto arbitrárias.

O trabalho deve ser realizado respeitando uma hierarquia obsoleta, retrógrada. A ambição não é tolerada pela rigidez da Igreja. Assim, cada um permanecerá sempre em seu patamar original, sem que haja qualquer mobilização social, garantindo assim o privilégio herdado do patriarcalismo cristão.

Seus amigos trabalham na única Fábrica que a vila possui, sendo detentora de todas as mordomias provenientes do subsídio. Nesta vila, o monopólio é instigado pelo poder executivo. Coincidentemente, a família que comanda a economia deste lugar é a mesma que faz o jogo político há gerações. Eles manipulam a vida social do povo e se baseiam nas escrituras para alienar essas pobres almas. Por inevitável consequência, Vila de São Tomé parou no tempo. Lá nada se cria, nada se transforma.

As mesmas pessoas que defendem a moral universal contribuem pouco a pouco com a degradação ambiental. O rio que abastece o pequeno vilarejo é constantemente assassinado com lixo doméstico e industrial. Hoje, já não é aconselhável o consumo de suas águas, repletas de mercúrio e chumbo. A informação recebida pela população não é suficiente para frear os crescentes índices de câncer que apodrecem a vida de São Tomé.

Viver, lá possui um significado um tanto concreto, definido. Acordar, comer, trabalhar, dormir. O que foge disso é censurado por olhos impiedosos e línguas venenosas. A vida particular é mera fantasia, simplesmente não existe. O que acontece na vida de cada um tem que ser sim compartilhada com a curiosidade do seu próximo. Assim, o controle ético está garantido.

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Ele amarra o cadarço do tênis, arruma o cabelo e respira fundo. Dali a pouco, quando descer do ônibus, será minuciosamente analisado pelos olhares curiosos de São Tomé. Relembra tudo o que pode ser levado em consideração nas rodas de conversas. Já sabe quais serão os temas debatidos e se convence de que ser polêmico em um universo cheio de hipocrisia não será uma boa idéia.

Chega em casa, abre a porta, dá um grande sorriso. Todos esperam para celebrar com ele essa festa que serve como pretexto para uma reunião familiar. Neste dia, tios, avós, primos e irmãos se esquecem de todas as desavenças e convivem na comunhão celestial. No natal, os pobres são lembrados no discurso que antecede a ceia farta. Durante esse minuto, sentem o peso de suas consciências. Mas logo se convencem de que a miséria existe porque o diabo assim quis.

Quando a festa é finita, ajeita suas coisas e parte sob as lágrimas saudosistas de seus pais. Estes já começam a planejar o próximo evento que reunirá seus filhos forasteiros novamente.

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Olhando pela janela do ônibus, vai deixando todas as incertezas para trás, debaixo dos empoeirados paralelepípedos. Retoma a razão e vai embora sem ter a esperança de encontrar algo novo em seu próximo retorno.

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